A bela da tarde
Conto de Thiago de Melo
“No
momento não estamos publicando literatura fantástica. Acreditamos que os
leitores querem algo mais realista e pessoal. Obrigado por considerar a nossa
editora para o envio de seus originais. Boa sorte na publicação de seu livro”.
Artur
deixou a folha cair na mesa do café. Essa já era a 8ª carta de rejeição que
recebia sobre seu manuscrito “Arcadia, o paraíso dos dragões”.
– Acho que as outras 7 editoras
sequer se darão ao trabalho de me mandar uma carta de rejeição. Humpf! “mais realista e pessoal”. É uma
forma interessante de dizer “auto-ajuda”.
Tomou seu terceiro copo d’água
desde que havia chegado e passou a observar o salão do café em que estava. Ia sempre àquele lugar. A tentativa do proprietário de imitar um
café parisiense havia agradado. Gostava de poder atravessar uma porta e se teletransportar para a França. Com o ordenado de fome que recebia como
assistente na Biblioteca Pública de São Paulo, esse era mesmo o mais perto que
chegaria de Paris.
A maioria dos rostos se repetia.
Empregados dos prédios de escritório próximos, adolescentes matando aula no
meio da tarde, um ou outro velhinho olhando pela vitrine do café, buscando lá fora algo que haviam perdido por dentro, talvez repetindo na mente as palavras de
Edith Piaf, que cantava no rádio: “Je ne
regrette rien”.
As idades variavam, mas Artur já
notara há muito que os clientes do café tinham sempre algo em comum: o celular.
Exceto os velhinhos, claro. Entre as gerações mais novas os celulares eram
onipresentes. Os executivos dos escritórios os encaravam a cada duas ou três
palavras trocadas, num movimento rítmico, quase uma respiração. Já para os
adolescentes o celular era como um órgão vital fora do corpo, mas com uma
agravante: a necessidade constante de uma tomada. O marca-passo de um
adolescente poderia ficar sem bateria, o celular jamais, seria pior que a
morte.
Mas havia alguém diferente nesse
dia. Vinte e poucos anos, adulta o suficiente para já ter provado um pouco
do bem e do mal do mundo, mas ainda jovem demais para já ter se desiludido,
ainda. Artur observava cada detalhe. Os cabelos castanhos desciam lisos ao lado dos olhos até os ombros. Os
óculos grandes para o rosto fino precisavam ser reposicionados de quando em
quando.
A composição era muito agradável
para Artur: o café parisiense, Piaf cantando, o sol da tarde entrando pela
grande vitrine ao lado da linda moça. Mas o que mais chamava a atenção era a
falta de um celular. Em vez do ópio do Século 21 a garota encarava vividamente
um livro. Ela desfrutava das palavras e a cada três ou quatro páginas levantava
o rosto para observar os pedestres do outro lado do vidro.
“Que criatura fantástica. Jovem,
bonita e leitora, em pleno terceiro milênio? Será possível?”, pensou.
Decidido a fazer contato, tomado
de uma coragem infinita da qual não conhecia a origem, levantou-se, tirou da
mochila uma cópia de seu livro que havia mandado encadernar e atravessou o café
confiante em direção ao alvo. Faltando dois ou três passos a coragem infinita acabou.
Hesitou. A jovem levantou o rosto e Artur, com a naturalidade de um ataque
epilético, sentou-se à mesa ao lado. A jovem achou divertido o acontecido e
sorriu levemente antes de retomar a leitura.
O coração de Artur martelava.
“Ela me viu. Ela sorriu pra mim.
Preciso fazer alguma coisa.”
Nada aconteceu.
“Diz alguma coisa, idiota!”.
Ele virou o rosto para ela e
balbuciou: – Eh... eh... - ela olhou na direção dele, que sorriu sem
graça.
– Olá. Vejo que somos os últimos
de uma espécie em extinção - e apontou para os livros que ambos tinham sobre as
mesas e em seguida para o mar de rostos vidrados nos celulares.
Ela seguiu com o olhar o
movimento da mão dele e depois sorriu com gentileza.
– É, parece que sim, mas espero
que não sejamos os últimos, ainda precisamos dos escritores.
Ela fez menção de voltar o rosto
para o livro, mas Artur atalhou.
– Eh... Que coincidência, não é?
Por acaso eu sou escritor – disse, forçando ao máximo sua melhor cara de
intelectual.
– É mesmo? Que livro você
publicou?
– Quer dizer, a parte da
publicação ainda precisa se concretizar, mas quanto a ser escritor, minha contribuição para o mundo das letras já está bem aqui nas minhas mãos.
– Legal – disse a jovem,
perdendo o interesse.
Com a coragem renovada por duas
frases de diálogo ele foi à mesa da jovem, apontou para a cadeira vazia em
frente a ela e perguntou: - Posso?
Antes que ela pudesse responder
ele já havia se instalado.
– Artur Guerra, proto-autor mundialmente
famoso. Muito prazer. E o seu nome, qual é?
– Oi, Artur. Meu nome é Taís.
Artur passou a falar de seu
livro e do quanto gostava de dragões, cavaleiros e histórias de fantasia. Disse
que trabalhava na biblioteca durante as manhãs e que passava as tardes naquele
café se dedicando à nobre e quase perdida arte da escrita. Reclamou do quanto
era incompreendido pelas editoras e do incrível potencial comercial de seu
livro. Taís se limitava a ir concordando com meneios de cabeça a cada breve
pausa daquele monólogo.
Depois de falar por longos
minutos, Artur já não conseguia segurar os três copos d’água e o café que havia
tomado desde que chegara. Ele pediu licença a sua jovem companhia e foi ao
banheiro.
Estava animado. Tudo estava
correndo muito bem. Lavou o rosto no banheiro e se olhou no espelho confiante.
Tinha certeza de que havia causado uma boa impressão. “Ela gosta de livros. Eu
sou escritor. A conexão é inevitável”, pensou.
Ao sair do banheiro não viu mais
Taís à mesa em que estavam. Procurou em volta. Nada. Aproximou-se da mesa e
viu um guardanapo embaixo de seu livro. O guardanapo tinha uma mensagem escrita.
“Oi, Artur, obrigada pela
companhia. Desculpe ir embora dessa forma, mas tive contatos pessoais demais nas
últimas tardes. Estou querendo ficar sozinha com meu livro, quero menos
realidade e mais impessoalidade. Boa sorte com a publicação do seu livro. Taís S.”
Artur deixou o papel cair sobre
a mesa.
– Já estou recebendo cartas de
rejeição até em guardanapos. Uns dizem que querem algo “mais realista e
pessoal”, outros “menos realidade e mais impessoalidade”. Oras! Editoras,
leitores, o que essa gente entende sobre livros afinal?
Ficou ali, sozinho, vendo a vida
passar na vitrine e murmurando a letra da música que tocava no café: “Je suis malheureux d’avoir si peu de mots à
t’offrir en cadeau, Darling” *.
FIM
* "Sou infeliz por ter tão poucas palavras para te oferecer de presente, Querida".
Adorei este conto, um final realmente surpreendente, não esperava. Continue assim, o caminho é este. Parabéns
ResponderExcluir